Caio Pinheiro
Março sempre será um mês celebrativo para o Movimento Negro brasileiro. Foi em março de 2003, que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei n° 10.639. E qual a importância da referida lei para as entidades representativas da negritude? Esta tornou obrigatório o ensino da Cultura e História da África e dos Afrobrasileiros, nas escolas públicas e privadas, que constituem a educação básica do país.
Contudo, importa esclarecer, que mesmo considerando o comprometimento do ex-presidente com a superação das interdições historicamente impostas aos negros, sua decisão pelo sancionamento não foi um ato de empatia pura e simples. Do contrário, a Lei 10.639 é fruto das lutas encampadas pelo Movimento Negro, que, ademais, têm raízes profundas e que devem ser conhecidas por aqueles (as) compromissados (as) com o empoderamento do povo negro.
Desde a expatriação desumana da África, na condição de escravos, africanos (as) e seus descendentes vêm resistindo à política de silenciamento, apagamento, bestialização e folclorização das referências socioculturais d’África que definem e alimentam suas identidades. Foram e são negros e negras afrocentrados (as), que a despeito do ônus, negaram-se e negam-se a “negar-se enquanto filhos da diáspora africana”.
Aquilombados em clubes, associações, grêmios e nos espaços de culto aos orixás, meus antepassados e mais velhos, colocaram-se na contramão dos que desde sempre buscaram e buscam nos desumanizar. Daí a importância de continuarmos combatendo o racismo que estrutura nossas relações sociais. Um racismo tipo exportação. Racismo implícito, sutil, cínico, ardiloso e capaz de camuflar-se nas artimanhas que cria e/ou herdou do famigerado “mito da democracia racial”.
Não obstante, se hoje podemos falar de um “orgulho negro”, é certo creditar essa expressão aos que tombaram por nós. A estes agradeço minha/nossa altivez no enfretamento do racismo e dos flagelos dele decorrentes. É justo depositar no protagonismo de tantos pretos e pretas que me/nos antecederam, meu/nosso direito de ter e praticar a afroautoestima.
Neste ínterim, nesse espaço, venho informar sobre a Lei n° 10.639, fruto desse protagonismo ancestral, e que tem ajudado a potencializar nossa afroautoestima. Lei que impõe como obrigatório o conhecimento da “Cultura e História do povo da cor da noite” por parte dos jovens que passam pela instituição escolar.
Como militante do Movimento Negro, ressalto que essa legislação representa a materialização de um sonho sonhado coletivamente. Um sonho engendrado nas lutas pelo direito à educação capitaneadas por organizações do quilate da Frente Negra Brasileira (FNB), fundada em 1931, do Teatro Experimental do Negro (TEN), constituído em 1944 e do Movimento Negro Unificado (MNU), nascido em 1978, quando à pauta do direito à educação foi acrescida a reavaliação do papel do negro na história nacional e sua tradução nos materiais voltados ao ensino.
Com a fundação do Movimento Negro Unificado (1978), ganhou força a atuação de intelectuais orgânicos (militantes-intelectuais) e acadêmicos (ligados às universidades) que buscaram promover a positivação da identidade negra nos espaços educacionais, questionando as imagens de subalternização, bestialização (negros enquanto seres bestiais) e etc. utilizadas para representar os portadores das cores, curvas e subjetividades d’África nos livros didáticos.
Em consequência, inúmeros estudos identificaram que nos livros didáticos o negro sempre era apresentado na condição de flagelo. Quando associado à escravidão, imagens e narrativas endossavam a ideia de que a violência do cativeiro era um efeito menor, dado os benefícios que o escravo obteria absorvendo a cultura “à europeia” de seus senhores, que, todavia, lhes transmitia sob o martírio pedagógico dos castigos.
O preocupante é que gerações de jovens negros e não-negros foram formadas sob a influência desse imaginário depreciativo do negro, que até pouco dominava os materiais de ensino. No entanto, passados dez anos de sancionada, a Lei n° 10.639, nos lugares em que vem sendo efetivamente implantada, tem sido estratégica para a elaboração de representações (forma de ver) mais positivas do negro.
Os alunos negros que hoje passam pela escola, aprendem que seus ancestrais foram reis e rainhas, na África. Tomam conhecimento de uma História da escravidão, na qual os escravos nunca se resignaram, do contrário, foram os principais protagonistas de sua libertação. Descobrem e referenciam-se em negros e negras que ocupam espaços de poder e exercem profissões prestigiadas socialmente.
A partir da Lei 10.639, os livros didáticos passaram a expressar um maior comprometimento com o reconhecimento e respeito à pluralidade sociocultural que caracteriza o tecido social brasileiro. Isso, sem dúvidas, tem contribuído na luta pela superação do racismo no universo escolar e na sociedade.
Enfim, agora, quando começa a colocar as palavras finais nesse caminho de palavras que desejam informar das consequências de mais uma batalha vencida pelo meu povo, vejo circular pelos corredores do CEEPAMEV - escola técnica da rede púbica estadual da Bahia -, vários adolescentes orgulhosos (as) da sua ancestralidade. Orgulho expresso nos coloridos dos adereços de motivos africanos que dão vida aos uniformes, e no desliar dos crespos trançados acrescidos de criativos Baby Hair. Enfim, viva a lei que deu visibilidade e valorização à “Cultura e História do povo da cor da noite".
Caio Pinheiro é historiador, educador, escritor e militante do Movimento Negro.
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