Raniere Souza
É bem provável que pelo menos por algum período na vida, você tenha enfrentado uma parasitose, sobretudo as intestinais. Inclusive, estudos mais recentes estimam uma persistência desses organismos em até 40% da população brasileira, e é sempre bom lembrar que, não são doenças de notificação compulsória, ou seja, há pouca coleta de dados que apontem a real prevalência entre as pessoas, e assim como em qualquer outro grande entrave de saúde pública, essa taxa varia expressivamente de acordo com a faixa etária, região, organização geopolítica e as condições sociais e culturais.
Os sintomas mais comuns são enjoo, diarreia, dor de barriga, fraqueza, falta de apetite e outros. De qualquer forma, apesar de muitos casos também passarem batidos, assintomáticos, não faltam por aí relatos de dramáticos encontros com algum espécime de verme, como por exemplo, as lombrigas, ou então alguns sinais e sintomas específicos que chamam mais a atenção no reconhecimento popular como a coceira anal que os oxiúros causam, assim como o inchaço abdominal provocado pela esquistossomose, que é conhecido como barriga d’água, ou ainda os cisticercos de tênia nas carnes de porco “canjiquinha”, e ainda falando da teníase, não se pode esquecer da sua temida solitária, que pode viver no hospedeiro por muitos anos.
Dentre os grupos mais prejudicados, as crianças se destacam, porque além de serem mais vulneráveis quando se trata de manter bons hábitos de higiene pessoal (Costumam brincar no chão, pôr as mãos e objetos sujos na boca, comer sem lavar as mãos e às vezes após contato com animais de estimação), seu sistema imunológico é mais imaturo e acaba facilitando o estabelecimento parasitário. Um dos principais impactos do parasitismo intestinal na população infantil é a precarização da nutrição, pois como estão em fase de crescimento, a capacidade de aprendizado e o desenvolvimento físico e intelectual podem se comprometer em longo prazo, ainda mais porque os focos de contaminação atingem principalmente as populações que já enfrentam uma nutrição carente.
As doenças parasitárias em geral são provocadas por diferentes tipos de organismos e microrganismos, sendo as intestinais protagonizadas por: Protozoários que em humanos, por exemplo, causam giardíase e amebíase; E helmintos, que causam ascaridíase, oxiurose, ancilostomíase, teníase, esquistossomose e outras. Esses seres se diferem bastante, pois enquanto os protozoários são seres formados por uma única célula, os helmintos (Vermes) são multicelulares, e, além do mais, vale destacar também a variabilidade dos seus ciclos biológicos e suas características, que explicam etapas em que o indivíduo saudável torna-se doente e, consequentemente, o surgimento de sintomas e outras especificidades de cada doença, isso significa que para chegarmos à raiz do problema, precisamos conhecer um pouco sobre suas interações com o ambiente, hospedeiros principais e em alguns casos, com hospedeiros intermediários.
A fim de ilustrar uma forma em que as particularidades do ciclo de vida do parasita nos ensinam a interpretar esse processo saúde-doença, tomemos, por exemplo, a sucessão de alguns eventos como nos casos da: Teníase, onde porcos alimentam-se de fezes humanas contaminadas, os ovos se rompem no intestino, as larvas migram pela circulação sanguínea e se instalam em diversas partes do animal (principalmente os músculos), que depois é abatido e sua carne com larvas císticas é consumida; Ou da ancilostomíase, que fezes com larvas são depositadas em solo ou água, se diferenciam em larvas infectantes, permanecem no meio externo alguns dias e quando entram em contato com a pele ou mucosas de alguém, perfuram ativamente até chegar à corrente sanguínea e prosseguir seu ciclo; Ou ainda os protozoários como as amebas, que em sua maioria não causam doenças (apenas a E. hystolytica ilustrada na figura 8), mas são também agentes infecciosos despejados nas fezes, que contaminam as águas e são transmitidos pela sua ingestão sem tratamento e de alimentos mal higienizados. Diante desses exemplos, fica claro que para romper os ciclos, de uma maneira geral, as intervenções devem ser voltadas à destinação dos resíduos sanitários das pessoas, garantia do consumo de alimentos de maneira e procedência adequada e também educação, porque a interação biológica nesse nível é previsível e consequência direta das condições de vida, que nesse ponto, tornam a situação bem mais desafiadora, pois, além disso, conseguir alimento, principalmente de qualidade, gás para cozinhar bem, produtos básicos de limpeza para as superfícies, para os alimentos e de asseio pessoal (Água sanitária, detergente, vinagre, sabonete e etc) e ainda obter instruções de saúde são grandes obstáculos que povo brasileiro tem pela frente.
Como mencionado anteriormente, esses parasitas chegam até nós e outros animais, geralmente, pela ingestão de ovos de helmintos e cistos de protozoários que saem nas fezes, ou ainda pelo contato com larvas infectantes em água ou solo, essa condição explica a prevalência nas comunidades que não têm acesso a serviço de esgoto, água limpa e tratada, então convivem com ele a céu aberto e dependem de fontes de água contaminadas como poços artesianos próximos de fossas sépticas ou rios e riachos com despejo de esgoto (realidade das periferias, distritos, zonas rurais e principalmente assentamentos, quilombos e áreas indígenas). Dessa forma, somente considerando em primeiro plano essas configurações socioeconômicas, que se pode planejar precisas estratégias de prevenção e controle de curto e longo prazo.
Resumindo essa chuva no molhado, não dá para falar de parasitoses sem falar de saneamento básico, planejamento urbano, educação e medidas de assistência social (Também se aplica às muitas outras doenças infecciosas de relevância causadas por vírus e bactérias como rotavirose, leptospirose e etc). A relação entre esses temas revela abandono e lesão no direito à saúde, no sentido de ser papel do estado, através de políticas públicas, prevenir, proteger e recuperar, como diz a constituição. Apesar da baixa mortalidade, a persistência é alta e relevante na qualidade de vida de grupamentos da sociedade, e há muito tempo, diversos estudos vêm ligando baixa renda ao acometimento, ou seja, atingem e incomodam somente a parcela mais pobre.
"Seção II
DA SAÚDE
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
III - participação da comunidade.
§ 1º. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. (Parágrafo único renumerado para § 1º pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)"
Entre outros pontos importantes como fiscalização sanitária de comércios e outros serviços, a proteção do SUS também conta com intervenção farmacológica (distribuição gratuita de medicamentos antiparasitários como o Albendazol) e em alguns casos muito específicos, intervenção cirúrgica em unidades hospitalares, e sendo prevenir melhor que remediar, nos municípios brasileiros, a Estratégia de Saúde da Família – ESF juntamente às Unidades básicas de Saúde – UBS (Postos de Saúde), desempenham função primordial na redução de casos, pois também compete às equipes multidisciplinares das unidades promoverem a educação sanitária da população. Entretanto, a criação e manutenção dos postos de saúde, remuneração de profissionais, aquisição de materiais, disponibilidade de medicamentos e outros custeamentos e controles são também responsabilidades dos poderes estaduais, municipais e suas secretarias.
O saneamento básico, por sua vez é também um direito de todos, ou pelo menos deveria, de acordo com a lei Nº 11.445, que estabelece as diretrizes do serviço. O descumprimento configura então outra lesão à constituição e desrespeito ao povo.
"[..] Art. 2º Os serviços públicos de saneamento básico serão prestados com base nos seguintes princípios fundamentais: I. Universalização do acesso; II. Integralidade, compreendida como o conjunto de todas as atividades e componentes de cada um dos diversos serviços de saneamento básico, propiciando à população o acesso na conformidade de suas necessidades e maximizando a eficácia das ações e resultados; III. Abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo dos resíduos sólidos realizados de formas adequadas à saúde pública e à proteção do meio ambiente; IV. Disponibilidade, em todas as áreas urbanas, de serviços de drenagem e de manejo das águas pluviais adequados à saúde pública e à segurança da vida e do patrimônio público e privado; V. Adoção de métodos, técnicas e processos que considerem as peculiaridades locais e regionais; VI. Articulação com as políticas de desenvolvimento urbano e regional, de habitação, de combate à pobreza e de sua erradicação, de proteção ambiental, de promoção da saúde e outras de relevante interesse social voltadas para a melhoria da qualidade de vida, para as quais o saneamento básico seja fator determinante; [...]
Art. 3º Para os efeitos desta Lei, considera-se:
I. Saneamento básico: conjunto de serviços, infra-estruturas e instalações operacionais de:
(a) Abastecimento de água potável: constituído pelas atividades, infra-estruturas e instalações necessárias ao abastecimento público de água potável, desde a captação até as ligações prediais e respectivos instrumentos de medição;
(b) Esgotamento sanitário: constituído pelas atividades, infraestruturas e instalações operacionais de coleta, transporte, tratamento e disposição final adequados dos esgotos sanitários, desde as ligações prediais até o seu lançamento final no meio ambiente;
(c) Limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos: conjunto de atividades, infra-estruturas e instalações operacionais de coleta, transporte, transbordo, tratamento e destino final do lixo doméstico e do lixo originário da varrição e limpeza de logradouros e vias públicas;
(d) Drenagem e manejo das águas pluviais urbanas: conjunto de atividades, infraestruturas e instalações operacionais de drenagem urbana de águas pluviais, de transporte, detenção ou retenção para o amortecimento de vazões de cheias, tratamento e disposição final das águas pluviais drenadas nas áreas urbanas;
II. Gestão associada: associação voluntária de entes federados, por convênio de cooperação ou consórcio público, conforme disposto no art. 241 da Constituição Federal;
III. Universalização: ampliação progressiva do acesso de todos os domicílios ocupados ao saneamento básico;
IV. Controle social: conjunto de mecanismos e procedimentos que garantem à sociedade informações, representações técnicas e participações nos processos de formulação de políticas, de planejamento e de avaliação relacionados aos serviços públicos de saneamento básico; [...]"
Em Ilhéus, um estudo traz o seguinte retrato: Há 184.236 habitantes pela vasta extensão territorial do município. Sendo que pouco mais de 15% (28.955) são residentes de zonas rurais, dos quais 72,3% recebem até meio salário mínimo mensal. Apenas 3% dos habitantes têm um sistema de esgoto. A maioria das comunidades rurais não tem acesso à água tratada, utilizando água de rios, barragens e poços artesianos como fontes para beber e realizar atividades domésticas, de higiene pessoal e/ou de lazer. Em todas as comunidades, a gestão adequada dos resíduos é negligenciada pelo poder público e, portanto pela população. Diante de um cenário desses, pesquisadores coletaram amostras fecais de crianças com idade entre 1 mês e 5 anos em 8 vilas principais e 32 assentamentos entre março e novembro de 2016 (o estudo também avalia as parasitoses em cães).
Como resultado, 132 (68,4%) das 193 crianças e 111 (77,6%) dos 143 cães analisados foram parasitados, sendo entre as crianças 88,6% dos casos causados por protozoários, dos quais 58,1% apresentaram mais de um tipo, enquanto nos cães foi de 87,4% por helmintos, sendo 47,4% de mais de um tipo. Observou-se predominância de giárdias nas crianças e ancilostomídeos nos cães. O artigo ainda aponta que os distritos litorâneos de Aritaguá, Olivença e o distrito sede apresentaram maior diversidade parasitária e sobreposição de importantes infecções zoonóticas. Durante o período de coleta, relatos de dor abdominal, perda de peso, diarreia e outros sinais clínicos relacionados às infecções gastrointestinais foram comuns em crianças, especialmente na comunidade do Jairi (Distrito de Olivença). (HARVEY, T. V. et al. 2020). Vale destacar que o artigo se aprofunda e analisa muito mais dados importantes, então, a depender da familiaridade com o tema ou por curiosidade, e apesar de estar escrito em inglês, compensa conferir na íntegra.
Por fim, as parasitoses são doenças negligenciadas porque são também mais um dos sintomas da exclusão do povo no projeto político. Pega a visão, Ilhéus, distrito e região!
Raniere Souza é militante da Consulta Popular – Núcleo Revolta no Engenho de Santana e integrante do coletivo Brasil Vermelho. É Bacharel em Biomedicina e mestrando em Ciências da Saúde pela Universidade Estadual de Santa cruz (UESC).
Referências:
CELESTINO, A. O. et al. Prevalence of intestinal parasitic infections in Brazil: a systematic review. Rev Soc Bras Med Trop. (2021).
HARVEY, T. V. et al. Enteric parasiticinfections in children and dogs in resource-poor communities in northeastern Brazil: Identifying priority prevention and control areas. PLoS Negl Trop Dis. (2020).
LÓPEZ, M. C. et al. Atlas de parasitología. Bogotá; Universidad Nacional de Colombia. El Manual Moderno; (2006).
NEVES, D. P. et al. Parasitologia Humana. São Paulo; Atheneu, 13ª ed. (2016).
TEIXEIRA, P. A. et al. Parasitoses intestinais e saneamento básico no Brasil: estudo de revisão integrativa. Braz. J. of Develop. (2020).
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