Mateus Britto
Períodos contrarrevolucionários, de pouca mobilidade que não sejam as manifestações espontâneas de parte da classe trabalhadora, exigem das organizações populares um cuidado especial com a teoria que as norteia. Primeiro, porque é necessário fazer um diagnóstico do período em que se está atuando, e esta análise, sem uma teoria sólida que a sustente, corre o risco de não somente ser ridicularizada pela História, mas de fazer tal organização dar um passo errado no processo em que pretende incidir. Um passo equivocado, baseado numa teoria equivocada ou não adequada, significa o desperdício de dispêndio de trabalho da militância e o desgaste desta militância é, senão, o desgaste de toda a organização. Em outras palavras, movimentar-se sem uma teoria que nos direcione para um rumo estratégico, ou pior, movimentar-se se baseando em teoria alguma, sobretudo em períodos contrarrevolucionários, é algo que põe em risco a integridade da classe trabalhadora organizada.
Mas é comum, também, que em períodos contrarrevolucionários, haja certa confusão em conceitos fundamentais para a nossa atuação enquanto classe, ou mesmo o desprezo de tais conceitos e de toda a teoria que os sustenta em nome de um suposto pragmatismo. Opõe-se de uma maneira pouco refletida a teoria e a prática, como se a teoria só interessasse aos doutos, aqueles de barriga cheia que tem tempo para estudar, criticar e fazer análises acadêmicas. Para nós, que estamos na ponta da lança, restaria a prática, ao que parece, sem uma teoria que a norteie, sobretudo as teorias “importadas”. Os companheiros acabam separando, de uma forma dualista esses dois conceitos que são importantíssimos para a ação da classe trabalhadora e chegam a justificar esse corte no nosso glorioso Paulo Freire. Vamos a Freire, então, para superar essa falsa polêmica:
Para Freire o ser humano é um ser da práxis, um ser que só o é devida a sua natureza transformadora. Esse aspecto da relação entre o ser humano e a natureza, da qual Freire parte, sabe-se, não saiu iluminada de sua genial cabeça, é debate desde a Grécia antiga e muito bem tratada por alguns autores do materialismo histórico-dialético. Esta característica – ontológica – do ser humano, Freire traduz como “quefazer”: o ser humano é um ser do quefazer, por isso mesmo, certas oficinas do diabo são chamadas de “falta do quefazer”; o “quefazer” é aquele algo sempre a ser cumprido. Se há algo a ser cumprido, há na prática uma reflexão, o fazer é, então, ação e reflexão. A ação humana é, desta forma, práxis, “todo fazer do quefazer tem de ter uma teoria que necessariamente o ilumine” (1968). Imaginem isso se aplicando num simples ato de bater um prego numa madeira, mas também imaginem o peso disso quando falamos de classe social, dentro de sua lógica inevitável de embates: “assim como o opressor, para oprimir, precisa de uma teoria da ação opressora, os oprimidos, para se libertarem, igualmente necessitam de uma teoria de sua ação.” (1968).
Como vemos, Freire, esse grande cabeçudo a serviço da classe trabalhadora, compreendia corretamente a importância da teoria para a nossa ação enquanto classe e deste pensamento deriva toda a sua contribuição sobre educação popular, trabalho de base, termos que todas as forças de esquerda têm na ponta da língua, muito mais por causa de uma atuação passada do que com essa perspectiva futura. Freire nunca defendeu nenhum “praticismo porque o mundo está acabando”, pelo contrário, via nas condições reais das massas a possibilidade e a necessidade de incidir uma teoria revolucionária. O trabalho de base é, para Freire e para todo o campo popular, a educação das massas para o exercício do poder, por isso ele depende de uma teoria que o norteie, ou correríamos o risco de sairmos do nada para o lugar algum. E claro, sem a teoria não teríamos capacidade sequer de analisar a realidade objetiva, para saber quais são os nossos inimigos e quais os seus interesses.
Essa “teoria que necessariamente ilumine” a ação da classe trabalhadora já existe e, ao contrário do que alguns companheiros pregam, não é uma teoria engessada que “deu certo em um lugar” e estamos tentando “aplicá-la”, tal como ela “foi” ao nosso momento histórico. Longe disso, vejamos, o socialismo científico é teorizado durante o século XIX, resultado da experiência prática e militante de Marx e Engels. A Revolução Russa ocorre em 1917, teria sido possível esse processo sem a teoria marxista nas trincheiras? O próprio Lenin, depois da derrota das forças revolucionárias em 1905, dedicou-se a escrever um livro combatendo a influência idealista que começava a tomar conta do movimento social-democrata sob o nome de empiriocriticismo. Não se vê uma linha sobre revolução no escrito, mas uma defesa da teoria. A defesa da teoria marxista n’O Estado e a revolução, sobre as terríveis “interpretações” de Kautsky, também constituem uma importante ferramenta para a classe trabalhadora em diversos movimentos revolucionários do século XX.
Mao (1941) advertia: “Embora estudemos o marxismo, o método usado por muitos de nós se revela diretamente oposto ao marxismo. [...] violam o princípio básico que nos recomendam [...]: unidade entre teoria e prática.” Ho Chi Minh (1950) afirmava que a formação dos quadros deveria começar pelo ensino da teoria marxista-leninista, “agir sem nada conhecer de teoria, é marchar às apalpadelas na noite, lenta e inseguramente.”As revoluções em China e no Vietnã se deram em contextos diferentes, com atores diferentes, mas assim como na Revolução Russa, foram norteadas por uma “teoria que necessariamente ilumine” a prática. Mesmo a Revolução Cubana, processo que inspira o respeito de diversas correntes de esquerda, e alvo de muitos debates acerca da tática foquista utilizada no processo da tomada do poder, ou na suposta “conversão” ao socialismo de Fidel somente depois ter se visto sem apoio internacional que não o da URSS, mesmo esta revolução foi orientada pela teoria marxista: “nossa posição, quando nos perguntam se somos marxistas ou não, é a mesma que teria um físico a quem se perguntasse se ele é ‘newtoniano’ ou a um biólogo se é ‘pasteuriano’.”, afirma o também reivindicado Che Guevara (1960), um homem incontestavelmente prático, mas só porque sabia o papel da teoria.
A dicotomia colocada entre “teoria x prática” se trata de uma falsa polêmica induzida pela própria falta de teoria. Todos os movimentos revolucionários acontecidos até hoje, inclusive os que não chegaram a conhecer o dia posterior, não só eram norteados por uma teoria em comum, como tinham na defesa dessa teoria, também, a sua atividade revolucionária. Associar a atividade teórica ao expectativismo deveria ser um papel que cabe aos meios de comunicação burguesa, mas as forças de esquerda "práticas" têm cumprido esse papel, alegando que a realidade está muito dura para falarmos de teoria. Mas o que podem elas oferecer ao povo? Mal, mal o pão. Não propõem nem a paz, nem a terra, não saberiam como. Quando o povo reage, ainda que espontaneamente, não há organização que dê luz acerca das contradições existentes naquele processo, pois não é possível revela-las sem a teoria. Rebaixa-se assim o horizonte, limita-se o espaço político às cadeiras legislativas e executivas, e impõem à classe trabalhadora a defesa de certas alianças, sem explica-la o que isso realmente significa.
Sim, o povo tem fome, e é por isso que ele precisa da teoria: para saber o que a causa. A teoria existe para iluminar o nosso caminho, cabe a nós nos apropriarmos e desenvolvê-la, pois a realidade está em constante movimento.
Mateus Britto é graduado em Licenciatura em História pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), militante da Consulta Popular – Núcleo Revolta no Engenho de Santana e integrante do Coletivo Brasil Vermelho.
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