Ingrid Macedo
No mês de novembro, uma comitiva do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) viajou por países da Europa para divulgar o Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – dados de 2021. Roberto Liebgott (missionário e coordenador do Cimi Regional Sul) e Paulo Lugon (assessor internacional do Cimi), acompanhados pelas lideranças Cullung Vei-Tcha Teie (retomada Xokleng Konglui em São Francisco de Paula – RS) e Rodrigo Mãdy Pataxó (aldeia Rio do Cahy, T.I. Comexatibá) apresentaram o relatório em diversas reuniões nos países Suíça, França, Bélgica e Alemanha.
O relatório é uma publicação anual elaborada pelo Cimi, fruto da sistematização de informações obtidas a partir de diversas fontes: além de dados obtidos junto a órgãos governamentais como secretarias estaduais de saúde e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), estudos e relatórios do Ministério Público Federal (MPF) e dados disponíveis no Portal da Transparência (mantido pela Controladoria-Geral da União - CGU), são utilizadas também informações colhidas e encaminhadas por missionários que atuam na própria entidade, informações reportadas em notícias e reportagens produzidas pela Assessoria de Comunicação do Cimi, publicações de variados veículos de imprensa, denúncias e informes de organizações, associações, comunidades e lideranças indígenas e de institutos de pesquisa e de organizações indigenistas e do campo socioambiental.
Não apenas, no último ano foram utilizados também dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), que, apesar de serem mais abrangentes e menos detalhados do que dados registrados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena, se fizeram necessários devido a defasagem dos dados da Sesai e a demora nas respostas às solicitações feitas via Lei de Acesso à Informação (LAI).
Não faltam evidências de que o ano de 2021 foi marcado pelo aprofundamento e intensificação das violências contra os povos indígenas no Brasil e das violações contra os direitos originários. Em seu terceiro ano, o governo de Jair Bolsonaro manteve a diretriz de paralisação das demarcações de terras indígenas e de completa omissão em relação à proteção e assistência das terras já demarcadas. Uma série de medidas do poder Executivo favoreceram a exploração, invasão e apropriação privada das terras indígenas e, ainda, a conduta e as declarações públicas de membros do governo federal, a começar pelo próprio chefe de Estado, incentivaram e banalizaram a violência sofrida por essas populações.
O relatório traz artigos introdutórios que exemplificam e resumem o que o ano precedente representou para os povos originários, chegando a afirmar que, para muitos destes, 2021 tenha sido o pior ano deste século. A postura do governo federal representou continuidade em relação aos dois anos anteriores e foi causadora do agravamento de um cenário que já era violento e estarrecedor, enquanto o governo Bolsonaro e sua base apoiadora atuaram de maneira direta para aprovar leis voltadas ao desmonte da proteção constitucional aos povos indígenas e seus territórios.
De fato, o relatório registrou aumento em 15 das 19 categorias de violência sistematizadas pela publicação em relação ao ano anterior e, consequentemente, uma grande quantidade de vidas indígenas interrompidas. Por exemplo, em 2021 foram contabilizados 176 assassinatos de pessoas indígenas – pouco menos do que 2020 que, com 182 crimes do tipo, atingiu o recorde desde que o Cimi passou a contabilizar este dado com base em fontes públicas, em 2014.
O Cimi também registrou o aumento, pelo sexto ano consecutivo, dos casos de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio”. No ano passado se deu a ocorrência de 305 casos do tipo, que atingiram pelo menos 226 Terras Indígenas (T.I.) em 22 estados do país. No ano anterior, 263 casos de invasão haviam afetado 201 terras em 19 estados. A quantidade de casos em 2021 é quase três vezes maior do que a registrada em 2018, quando foram contabilizados 109 casos do tipo.
Os capítulos do relatório incluem e detalham a violência contra a pessoa e contra o patrimônio, a violência por omissão do poder público, as mortes por Covid-19, informações sobre povos em isolamento voluntario, dados sobre o encarceramento indígena, situação legal de terras e aldeias no território brasileiro e propõe, ainda, uma reflexão sobre mecanismos de reparação e não repetição de violações aqui citadas. A obra denuncia também o desmonte e militarização da Fundação Nacional do Índio (Funai) e a consequente atuação contraria aos direitos indígenas.
Em resumo, a publicação sintetiza uma série de dados coletados em todo o país e forma uma demonstração gráfica e textual, ancorada em fontes oficiais e/ou seguras, do racismo anti-indígena que estrutura o Estado brasileiro. Segundo Iara Tatiana Bonin, Doutora em Educação, as violações frequentes e sistemáticas aos direitos de povos e comunidades não podem ser vistas apenas como atos pontuais de intolerância, negligencia de funcionários e órgãos públicos, manifestação da perversão de indivíduos ou resultado da ação isolada de grupos, no plano social: é necessário reconhecer que as violências as quais os nativos são submetidos são perpetuadas e ancoradas pelo racismo estrutural, manifestando-se em 4 aspectos principais: a desterritorialização, os novos arranjos do interacionismo, as práticas diretas de extermínio e, por fim, o racismo expresso no desrespeito e na discriminação. Retirar o direito originário ao território para transformá-lo em mercadoria ou fonte de mercadorias é o objetivo e o resultado final do plano capitalista-colonial em terras indígenas.
A divulgação internacional desta publicação tem como objetivo ampliar a visibilidade externa da questão indígena no Brasil, conscientizar líderes de países e organizações a interromperem projetos e parcerias que se formam em detrimento dos direitos originários e buscar apoio e aliados na defesa destes direitos. A apresentação do relatório na Europa iniciou-se durante os eventos que compuseram o quarto ciclo da Revisão Periódica Universal (RPU) do Brasil no Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas na Suíça, onde as lideranças indígenas participaram de reuniões e mesas de debates, expondo a situação de marginalização e violência em seus próprios territórios, relatando também a vivência de outros povos para expor um quadro geral da questão indígena brasileira. A comitiva se reuniu ainda com membros do Parlamento Nacional e fez o lançamento do relatório no Centro Latino-Americano da Universidade de Zurique.
Na França, o grupo se encontrou com a Coalizão Solidariedade Brasil (que reúne instituições como Autres Brésilis, Emmaus Internacional, CAIA – Nitassinan e a Secours Catholique), compareceu ao Serviço Externo Europeu com o diplomata Stefan Pauwels (que atende às demandas do Brasil na União Europeia) e apresentou o texto em reunião com a Fian (organização global de direitos humanos que defende o direito à alimentação e nutrição adequadas). O grupo deu entrevistas publicadas em sites e divulgadas em canais de televisão, organizadas pelo Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas para a América Latina, e participou também de uma reunião remota com a equipe do governo de transição responsável pelas discussões das temáticas dos direitos humanos, debate que teve como convidados lideranças das comunidades originárias e tradicionais, bem como as entidades de apoio, dentre elas Cimi e o Conselho de Missão entre Povos Indígenas (Comin).
Já na Bélgica, mais precisamente em Bruxelas, o Cimi realizou o lançamento da publicação com a participação de Paulo Lugon e a cacique Cullung Xokleng. E, finalmente, na Alemanha, em um evento promovido pela articulação KoBra - Kooperation Brasilien (onde estão as entidades: Misereor, Adveniat, Caritas Internacional, MZF, Heks Eper, Terra des Hommes, entre outras...) as lideranças integraram a mesa de debates sobre as lutas sociais pelos direitos dos povos e comunidades tradicionais à justiça climática no contexto das mudanças climáticas.
O cacique Mãdy Pataxó é nativo da T.I Comexatibá na costa da invasão, conhecida e publicizada pela administração pública como Costa do Descobrimento, no extremo-sul da Bahia e o processo de demarcação do seu território se encontra parado há anos. O território vizinho, T.I. Barra Velha, passou por um reestudo já identificado, mas a demarcação da expansão do território também não foi levada adiante. Segundo o relatório, em 2021 o povo Pataxó do extremo-sul baiano e seus territórios foram alvos de loteamento ilegal, invasão por latifundiários e grileiros, ocupação indevida por empreendimentos de turismo (de caráter predatório), assassinato (são 9 as mortes registradas no relatório), tentativas de assassinato, ameaças de morte, disparos de armas de fogo como forma de intimidação, incêndio aplicado em de vegetação nativa e áreas de proteção ambiental, danos ao patrimônio, desassistência na área de saúde... Além disso, existe nestes territórios uma grande quantidade de aldeias a identificar (incluídas na programação da Funai para futura identificação e delimitação) ou sem providências (isto é, reivindicadas pelas comunidades, mas ainda sem nenhuma providência administrativa para sua regularização).
Já a cacique Cullung Xokleng é liderança da retomada Konglui em São Francisco de Paula (RS), que reivindica a área da Floresta Nacional (Flona) ao menos desde 2009. Com o propósito de fazer a autodemarcação, em 2020, Cullung conduziu um grupo de seu povo para ocupar e retomar o território ancestral, mas os indígenas acabaram deixando a área em 1 de janeiro de 2021, como estratégia de proteção após sucessivas ameaças de reintegração de posse. Em seguida, em julho de 2021, o governo federal realizou o edital de concessão da Floresta Nacional: o consórcio vencedor reúne as empresas STE Engenharia e a Urbanes, que devem investir mais de R$ 72 milhões em um centro de visitantes, serviços de alimentação e outras implementações que serão realizadas no local. O território ancestral do povo Xokleng está ameaçado pela privatização e entregue à exploração econômica. Atualmente, o grupo segue resistindo às margens da RS-484, do lado de fora da cerca da Flona, sem acesso à terra ou a qualquer recurso ambiental que lhes possa ajudar na sustentabilidade.
No relatório, o Cimi registrou que a retomada Konglui sofreu diversas ameaças e intimidações (incluindo episódios em que pessoas que se anunciaram como policiais adentraram a retomada sem apresentar qualquer documentação), desassistência da Funai e Sesai, obstacularização ao registro de nomes próprios oriundos da tradição Xokleng e a anteriormente citada concessão da Flona para privatização sem prévia apreciação da questão fundiária envolvendo a comunidade nativa.
É importante salientar que o povo Xokleng é alvo do processo que trata, no mérito, de uma disputa possessória envolvendo a Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e que inclui o Recurso Extraordinário com repercussão geral (RE-RG 1.017.365), podendo definir o destino dos povos indígenas e suas terras por todo o país, por ter ao centro do debate a tese restritiva do marco temporal. Nos últimos anos a Funai se ausentou do julgamento do RE, do qual é autor e no qual foi, originalmente, um aliado do povo Xokleng. A posição do órgão atualmente é favorável à tese nefasta do marco temporal, defendendo uma interpretação aliada à exploração predatoria das terras indígenas.
Conheça a retomada Konglui e a luta do povo Xokleng aqui.
Você pode acessar e baixar direto no seu dispositivo de preferência a versão digital do Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – dados de 2021 aqui.
Ingrid Macedo, de nome indígena Juacema, pertence ao povo Pataxó, é artesã, comunicadora popular e integra o coletivo Brasil Vermelho.
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