Caio Pinheiro
Os dissensos fazem parte da democracia. Trocando em miúdos, no regime democrático é possível e esperado que existam opiniões distintas sobre temas comuns, e, dentro dos limites previsto em lei, também conflitantes. Contudo, para nosso regime democrático, a liberdade, seu fundamento maior, nos últimos anos tem sido recorrentemente relativizada pois, dependendo de quem, quando, em favor do quê ou contra o quê a reivindica, pode preservá-la ou promover sua deterioração.
Esse relativismo tão insuportável ao bom-senso não é novo. Historicamente há inúmeros casos de violação das liberdades democráticas sob a justificativa de preservá-las. De 1964 a 1985, setores expressivos das forças armadas aliançados com frações da classe política e fragmentos da sociedade civil, nos mergulharam numa longa noite de arbítrio, justificando toda sorte de violação às garantias individuas como único mecanismo de defesa da democracia, então ameaçada pelo fantasma do comunismo, que, todavia, sabe-se que só existe no imaginário da nossa torpe classe média norte-americanizada.
No entanto, mesmo que haja opiniões em contrário, já que o dissenso é democraticamente aceitável, guinadas ao arbítrio escondem sempre seus reais motivos, que de tão escandalosos à luz da moralidade, se conhecidos prestariam um desserviço aos que buscam defender/preservar a liberdade-democrática impondo o arbítrio-ditatorial. No entanto, como se diz: não há mentira que dure para sempre!
É sob a perspectiva acima que analiso o destempero do Deputado Federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) ao comparar professor com traficante, em mais um de seus delírios extremistas. Confesso caro leitor (a) que não gosto de ser monotemático, mas nesses últimos anos, quem se aventura a falar da cena política nacional, e sendo um progressista, dificilmente irá se rogar a denunciar o clã Bolsonaro e seus reincidentes ataques à nossa democracia, que, ainda jovem, já fora tantas vezes violada e violentada.
Os que flertam com autoritarismo adoram ser convenientes politicamente. Confundem propositalmente alhos com bugalhos. Até acreditam na liberdade, além de se autoproclamem democratas. Alguns, inclusive, chegam até a reivindicar respeito aos direitos humanos. Contudo, todo esse apego aos fundamentos da civilização, só é pertinente se estiver ao seu favor.
Por isso, mas não só, os amantes da exceção odeiam os professores que na sua performance docente fomentam uma educação comprometida com a formação de cidadãos críticos e reflexivos. Esquecem nossos fascistas que a racionalidade é uma característica inerente à condição humana. Daí preferem uma educação compromissada em formar indivíduos propensos à subordinação. Cidadãos tementes ao que é prescrito, e, portanto, impermeável à reflexão sobre seus atos, bem como o das instituições sociais.
Sobre esse olhar é possível entender a infeliz comparação entre traficantes e professores proposta pelo pouco letrada Eduardo Bolsonaro, vulgo 02. Numa acepção simplista, traficante é aquele (a) que comercializa (faz circular) bens (mercadorias) que são interditas à luz da legislação vigente. Bens interditados são aqueles que por consenso legislativo têm o potencial de desarmonizar e degradar o tecido social, a exemplo do que ocorre com muitas substâncias psicoativas.
No entanto, é certo que Eduardo Bolsonaro não se referiu a todos (as) professores (as) quando expurgou, como um vômito fétido, mais um de seus despautérios. Então, a quem se destinou sua infeliz comparação? Imagino que o ódio travestido de analogia inapropriada do 02, teve como destino os professores (as) descompromissados com a verdade única. Professores (as) permeáveis a uma educação que forma cidadãos capazes de reivindicar o gozo, a garantia e preservação de direitos. Professores que à luz dos fundamentos científicos, demonstram aos estudantes que a desigualdade é reflexo da ausência de direitos. Foram a esses professores (as) que se destinou a desqualificadora comparação do 02.
Então, pensei: depois de duas décadas na docência descobri que sou traficante. Isso mesmo! Como tantos colegas, eu, sem vacilar, segundo o 02, tenho passado reiteradamente algo ilegal aos meus alunos. Falo do conhecimento que liberta. Todavia, para o ódio dos que odeiam os que educam para a liberdade, o que trafico é traficado por tantos outros (as) educadores (as) dessa República que quase foi engendrada pelo fascismo. Por tudo isso, me manterei traficando para que meus alunos um dia sejam presos por “porte ilegal de conhecimento”. Aí orgulhosamente constatarei que valeu ser tomado como traficante!
Caio Pinheiro é historiador, educador, escritor e militante do Movimento Negro.
Comments