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POVOS INDÍGENAS E A DITADURA MILITAR

Mais de 8 mil indígenas mortos, campos de concentração para indígenas, escravidão indígena, tortura, Guarda Rural Indígena, Relatório Figueiredo. Para nós, nunca acabou a ditadura.


Laís Munihin



A Comissão Nacional da Verdade (CNV) estimou em 8350 o número de indígenas mortos em decorrência da ação direta de agentes governamentais ou de sua omissão, no entanto, o número deve ser maior segundo o Relatório da CNV.


O Relatório Figueiredo

Foi um documento produzido pelo próprio Estado, encomendado pelo Ministério do Interior em 1967 com aproximadamente 7 mil páginas, reunidas em 30 tomos, relatando os crimes de omissão e de violência direta cometidos contra os povos originários pelo Estado brasileiro.


Desapareceu após o AI-5, sob a alegação de que havia sido destruído em um incêndio. No entanto, o Relatório foi encontrado 45 anos depois, em 2013, praticamente intacto, com mais de 5 mil páginas reunidas em 29 tomos. No Relatório, há a denúncia da introdução deliberada de varíola, gripe, tuberculose e sarampo entre os indígenas. Além dos crimes de escravidão, usurpação do trabalho indígena, assassinatos, prostituição, sevícias, apropriação e desvio de recursos oriundos do patrimônio indígena e dilapidação do patrimônio indígena.

Trecho do Relatório Figueiredo: “Crimes contra a pessoa e a propriedade do índio”.

Jader de Figueiredo, procurador que produziu o Relatório Figueiredo, ainda explicitou a política de extermínio aos povos indígenas do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) em seu relatório oficial. Relatório disponível aqui.


A Guarda Rural Indígena (GRIN)

Criada em 1969 pelo Capitão Manoel Pinheiro, pela Portaria nº 231/1969, da presidência da Funai, com o objetivo de formar grupos paramilitares, compostos por indígenas, destinados a exercer policiamento ostensivo nas aldeias indígenas, isto é, “manter a ordem interna nas aldeias”, coibir o deslocamento de indígenas, impor trabalhos e denunciar infratores ao Destacamento da Polícia Militar instalado. A única turma formada da GRIN foi composta de 84 indígenas das etnias Xerente, Maxakali, Karajá, Krahô e Gavião, no início de 1970. Sua formação foi constituída, sob as ordens do Capitão Manoel Pinheiro, com técnicas de judô e de tortura — como o pau de arara — além de princípios de ordem munida, marcha e desfile, continência, educação moral e cívica, patrulhamento, abordagem, condução e guarda de presos, etc.

Cena da apresentação da 1ª turma da GRIN do filme “Arara” de Jesco von Puttmaker.
Cena da apresentação da 1ª turma da GRIN do filme “Arara” de Jesco von Puttmaker.

Indígenas que cometiam infrações consideradas leves, eram punidos com prisão na própria aldeia, ao passo que as infrações consideradas graves eram punidas com exílio no Reformatório Krenak, instituição criada, também, por Pinheiro.


De acordo com o Relatório Figueiredo, a atuação da GRIN resultou na manutenção de contratos criminosos de exploração das terras indígenas, além de corromper as lideranças, alimentar o faccionalismo interno, instalar um clima de constante revolta entre indígenas, beneficiar posseiros e invasores de Terras Indígenas (TIs), transformar indígenas em “marginais” e meros espectadores do desenvolvimento implantado em suas terras pelos fazendeiros e de transformar o problema da embriaguez como uma constante dentro das aldeias.

Recomendação: filme GRIN com direção de Roney Freitas e co-direção de Isael Maxakali e Sueli Maxakali.

Reformatório Krenak e Fazenda Guarani: campos de concentração indígena

Sob o comando do Capitão Manoel Pinheiro, o Reformatório Krenak registrou oficialmente o confinamento de 121 indígenas entre 1969 e 1979: 22 Karajá [Iny], 17 Terena, 13 Maxakali [Tikmũ’ũn], 11 Pataxó, 9 Krenak, 8 Kadiwéu, 8 Xerente, 6 Kaiowá, 4 Bororo [Boe], 3 Krahô, 3 Guarani, 2 Pankararu, 2 Guajajara, 2 Kanela, 2 Fulni-ô, 1 Kaingang, 1 Urubu, 1 Kampa [Ashaninka], 1 Xavante, 1 Xakriabá, 1 Tupinikin, 1 Sateré-Mawê, 1 Javaé e um não identificado (dados retirados do Relatório da CNV).


No entanto, o número de indígenas presos no Reformatório foi maior, como João Geraldo Ruas relatou, após assumir a chefia no lugar de Pinheiro, que, após um levantamento, encontrou 150 presos, ao passo que constavam 100 no registro da época.

Planta do Reformatório Krenak, com salas: almoxarifado, sala de máquinas, alojamento, administração, depósito, ambulatório, gabinete médico, farmácia, cela individual, varanda, refeitório, cozinha, enfermaria, cubículos para detenção, confinamento, um hall e espaço de circulação.

O Reformatório Krenak foi um campo de concentração étnico e centro de torturas, conforme o Relatório Final da CNV e o Tribunal Russell II, em que indígenas eram enviados para “reeducação”, mas a realidade era outra: trabalho forçado, isolamento, espancamentos com cassetetes e chicotes, torturas, privações de comida e água, cerceamento da liberdade e dignidade. Em uma audiência da CNV, Bonifácio Duarte, da etnia Guarani-Kaiowá, detido no Reformatório, relatou o período em que esteve preso:

“Amarravam a gente no tronco. Quando eu caía no sorteio pra ir apanhar, passava uma erva no corpo, pra aguentar mais. Tinha outros que eles amarravam com corda de cabeça pra baixo. A gente acordava e via aquela pessoa morta que não aguentava ficar amarrada daquele jeito. [Pra não receber o castigo…] a gente tinha que fazer o serviço bem rápido. Depois de seis meses lá, chegou o Teodoro, o pai e a mãe dele presos. A gente tinha medo. Os outros apanharam mais pesado que eu. Derrubavam no chão”.

A Fazenda Guarani, sucessora do Reformatório Krenak após ter sido desativado, localizava-se no município de Carmésia (MG), em uma área que pertencia à Polícia Militar. Em 1972, indígenas Krenak no município de Resplendor e os indígenas presos no Reformatório foram transferidos para lá. Dessa maneira, a Fazenda Guarani assumiu o papel de central carcerária indígena da ditadura. Constava também que a Fazenda recebia indígenas para “tratamento mental”, apesar de não haver estrutura e atendimento psiquiátrico disponível no local.


Indígenas que lutavam pela demarcação de terras, eram enviados diretamente para a Fazenda. Toninho Guarani relatou que o confinamento para os Guarani foi uma tentativa de impor o sedentarismo ao povo, o que atualmente constitui uma violação aos direitos dos povos indígenas em exercer seus costumes, tradições e espiritualidade (direito conquistado e garantido pela Constituição Federal de 1988), haja vista que os Guarani caminhavam em busca da Terra Sem Males (Yvy marã e’ỹ).


Atualmente, o Reformatório Krenak encontra-se abandonado dentro de uma aldeia Pataxó. O casarão onde era a Fazenda Guarani serve de moradia para 280 indígenas Pataxó, enquanto a antiga solitária virou um depósito.


Alguns casos de violações aos povos indígenas no período da ditadura militar que foram julgados:

Tribunal Russell II

Durante a realização do Tribunal Russell II, entre 1974–1976, o Brasil foi condenado pelos casos julgados dos povos Waimiri-Atroari, Yanomami, Nambikwara e Kaingang de Mangueirinha.


Yanomami

O Projeto Radam da Amazônia, de 1970, deu início a uma corrida mineral na Amazônia dado o mapeamento de áreas promissoras de recursos minerais na região. Estas áreas se encontravam em terras Yanomami. A Perimetral Norte levou o acesso às terras, causando a morte de mais de 50% da população indígena da aldeia Catrimani, através de gripes e doenças não-letais aos não-indígenas, porém, fatais para indígenas isolados ou em processo de “integração” (à mentalidade da época; atualmente: povos de recente contato). A invasão dos garimpeiros não se conteve apenas na aldeia Catrimani, alcançou diversas outras, em que os garimpeiros poluíam os rios com mercúrio, afastavam a caça com barulho e provocaram fome e desnutrição. Assim, em 1993, Jarbas Passarinho, ex-ministro da Justiça, reconheceu a política genocida contra os povos indígenas.


Xetá

A partir da década de 1940, a indústria cafeeira adentrou a Serra dos Dourados, território Xetá, massacrando a população. O SPI e o deputado estadual Antonio Lustosa de Oliveira realizaram expedições a Serra dos Dourados a fim de remover os Xetá de seu território. A partir da década de 1950, fazendeiros e o SPI iniciam uma política de sequestro de crianças Xetá, que eram “distribuídas” a família não-indígenas, a fim de dispersar os indígenas do território; além de transferi-los, forçadamente, a áreas indígenas Guarani e Kaingang ao redor do Paraná.


A Companhia Brasileira de Colonização (Cobrinco) acobertava suas ações com o silêncio imposto à força por meio de técnicas de tortura, conforme divulgado na Revista Panorama em 1978, na reportagem O Massacre dos Xetá de Valêncio Xavier. As denúncias foram levadas à 7º IR/SPI, ao CNPI e ao Congresso Nacional, no entanto, o Estado não adotou nenhuma medida de proteção.


Já no período da ditadura, o Estado remove os últimos indígenas Xetá agrupados na fazenda Santa Rosa e declara, portanto, a extinção da etnia. Os Xetá foram abandonados em postos indígenas, com tuberculose, varíola e famintos, segundo documentos do SPI; além de negado o direito de se reunirem e viverem juntos. Apenas no final da década de 1980 que o Estado reverteu a catalogação de “extintos” da etnia, após a realização do Projeto Memória Indígena do Paraná, que colheu depoimentos dos Xetá sobreviventes. Dessa maneira, o Ministério Público do Paraná, baseando-se na definição de genocídio da Lei 2.889/1956, atesta que houve um genocídio contra a etnia Xetá.


Aikewara

O povo Aikewara, também conhecido como Suruí do Pará, foi vítima de maus tratos, violências e torturas, com privação de água, comida e sono, além de uma “prisão domiciliar”, durante a Guerrilha do Araguaia, no período da ditadura militar. Durante o julgamento sobre o caso em 2014, a Comissão da Anistia do Ministério da Justiça reconheceu a ação de exceção-repressão do Estado brasileiro contra os povos originários e, assim, emitiu um pedido de perdão oficial e concedeu a condição de anistiado político a 14 indígenas Aikewara, juntamente de uma indenização.


Plano de Integração Nacional (PIN)

Além desses casos, houve no ano de 1970 a criação do Plano de Integração Nacional (PIN), através do Decreto-Lei 1.106/1970, assinado pelo presidente Médici, que tinha como lema “integrar para não entregar” e “terra sem homens para homens sem terras”. O PIN visava a “ocupação” da Amazônia, haja vista que ela era representada por um vazio populacional, ignorando a existência dos povos indígenas que lá viviam. Assim, tinha como objetivo a abertura de estradas, como a Transamazônica e as BR 163 (Cuiabá-Santarém), 174, 210 e 374 para colonizar o território.


No entanto, a abertura das estradas implicava na expropriação de terras indígenas, inclusive, José Costa Cavalcanti, ministro do Interior e um dos signatários do AI-5, declarou que a Transamazônica cortaria terras de 29 etnias indígenas. Dessa maneira, a Funai firmou um convênio com a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e “se tornou a executora de uma política de contato, atração e remoção de indígenas de seus territórios em benefício das estradas e da colonização pretendida” (CNV, 2014, v.2, p. 209), reforçando o endurecimento da política indigenista e, consequentemente, evidenciando a política anti-indígena.


Com o início da construção da BR-163 (Cuiabá-Santarém), um decreto presidencial havia delimitado reservas indígenas, no entanto, não foram demarcadas. Por conta disto, os indígenas Suyá [Kisêdjê] foram massacrados por empresas de extração de borracha e tiveram de ser transferidos para a Terra Indígena do Xingu a fim de evitar seu desaparecimento.


No caso dos Kayabi da região do Rio dos Peixes, uma parte foi levada à TI Xingu por conta de conflitos com seringueiros e caçadores de peles, contudo, alguns decidiram permanecer em suas terras, que eram constantemente invadidas. Em outubro de 1973, recorreram à Funai para pedir armamentos para defesa, mas, em resposta receberam a recomendação de se manterem calmos e esperarem providências legais.


As providências legais: Estatuto do Índio de 1973

Em dezembro de 1973, promulgou-se o Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/1973), que estabelece uma “renda indígena”, ou seja, legaliza a exploração de madeira e outras riquezas em áreas indígenas, no artigo 43. Já no artigo 20, tem-se a introdução da “possibilidade de remoção de populações indígenas por imposição da segurança nacional, para a realização de obras públicas que interessem ao desenvolvimento nacional, e inclui a mineração” (CNV, 2014, v.2, p. 211).


O que se pode entender por segurança e desenvolvimento nacionais no Estatuto é relativamente vago, algo estrategicamente formulado para, na década de 1980, tentar proibir a demarcação de terras indígenas na faixa de fronteira, principalmente pela declaração dos povos indígenas em condição de virtuais inimigos internos.


O Estatuto coloca a “integração” dos povos indígenas — entendida como assimilação cultural — como o propósito da política indigenista, em que a política de assimilação cultural preconizada pelo desenvolvimento do Estado se caracteriza como um projeto etnocida, ou seja, um programa de destruição das culturas dos povos originários, assim como de suas identidades (através, por exemplo, de certidões negativas fraudulentas acerca da existência de indígenas), produzindo o discurso e enraizando na mentalidade da sociedade de que não “existiriam mais indígenas”.


Virtuais inimigos internos

Povos indígenas na ditadura foram declarados sob a condição de virtuais inimigos internos, ou seja, como questão de segurança nacional por conta do argumento de que poderiam ser influenciados por estrangeiros ou por seus territórios localizarem-se em áreas com “riquezas naturais” ou estarem no caminho de projetos de obras “desenvolvimentistas”.

Essa condição gerou também o processo de militarização das políticas indigenistas através da GRIN e dos presídios/campos de concentração indígenas, como Reformatório Krenak e Fazenda Guarani, sob a administração do SPI e posteriormente da Funai.

Por conta do militarismo do Estado e suas políticas, diversas violências foram cometidas contra indígenas e registradas em documentos como o Relatório Figueiredo (1967), nas CPI do Senado de 1955 e da Câmara de 1963, 1968 e 1977, no Tribunal Russell II (1974–1976) e no Relatório da Comissão Nacional da Verdade (2012–2014), além de diversas reportagens de jornais (ex: Jornal Indígena, Folha de São Paulo, O Globo, O Estado de S. Paulo).


Algumas outras referências bibliográficas:
  1. A Política de Genocídio Contra os Índios do Brasil. [S.l.]: AEPPA — Associação de Ex-presos Políticos Antifascistas, 1974. Arquivo Nacional.

  2. VALENTE, Rubens. Os Fuzis e as Flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura. Cia das Letras, 2017

  3. BERBERT, Paula. “Para nós nunca acabou a ditadura”: instantâneos etnográficos sobre a guerra do Estado brasileiro contra os Tikmũ’ũn-Maxakali. Belo Horizonte: UFMG, 2017

Referências sobre as violências e violações cometidas contra os Avá-Guarani por conta da construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu Binacional:
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Laís Munihin, indígena do povo Maxakali, é bacharela e licenciada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), professora de Sociologia, pesquisadora nas áreas de Sociologia das relações étnico-raciais e encarceramento indígena e coordenadora no projeto educacional Tem Cor no Ensino. Acompanhe o seu trabalho no instagram.


*Artigo publicado originalmente no Medium da autora.

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