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SÃO JOÃO NA QUARENTENA (CONTO)

Atualizado: 2 de fev. de 2022

Mateus Britto


Estamos no trânsito. Tudo indica que o acidente ocorreu como sempre, um apressado do lado de cá não viu como ultrapassar pela faixa do ônibus e cortou pela esquerda, acertando o motociclista que havia feito sua primeira corrida do dia. Não foi precisamente na ponte, sabemos que estas não comportam tais faixas exclusivas, ao menos nessa cidade relativamente grande para mim que sou da roça, mas foi em ponto estratégico para impedir o tráfego nos dois sentidos.

Em nosso veículo, além de nós, há um único homem, seu carro é confortável, mas não pode passar por cima dos que vão, ou melhor, dos que não vão à frente, dada a natureza democrática dos engarrafamentos. Se fosse verão, seus vidros estariam fechados e o ar condicionado ligado, mas estamos em junho, logo, ele aproveita os ventos que vêm do mar sem queimar a pele com o sol que não pede licença.

Como nenhuma atitude irá apressar o movimento elíptico da terra, resta esperar que os profissionais ressuscitem o homem do capacete após decidirem quem teve mais culpa na pseudo-tragédia.

Liguemos o rádio. Programa evangélico pirata, música pop, programa evangélico legal, notícias da cidade, outro programa evangélico. Ficamos com as notícias. É junho, aparentemente estão falando da proibição das fogueiras de São João, é um debate:

– ...porque, veja, o governo do estado está se mostrando completamente incompetente no lidar com essa epidemia, principalmente no tocante à economia, tá me entendendo? Já está provado que as pessoas que ficam em casa estão mais propensas a adquirir o vírus, por causa da circulação de oxigênio que é menor. Então, é preciso abrir o comércio, deixar as pessoas trabalharem com as devidas precauções, além do mais, não se pode proibir o povo de exercer livremente a sua religião, sobretudo a católica, que tem a tradição de acender as fogueiras nesse dia de São João. – Diz a voz grave e rouca da idade.

Subestimado esse veículo de comunicação, o rádio. Muitas pessoas estão ouvindo diariamente essa voz falar asneiras que, por causa da repetição, estão se tornando verdades científicas. Mas para evitar a oratória do pastor, continuemos nesse programa, outro homem vai falar.

– Olha, Santos, o negócio não é bem por aí. Nossa cidade já bateu mil casos confirmados da doença e a recomendação, inclusive a dos órgãos internacionais é que as pessoas fiquem em casa pois quanto mais aglomeração, maior é o risco de adquirir o vírus. Quanto às fogueiras, veja bem, a fumaça gerada vai dificultar a capacidade respiratória das pessoas que já estão doentes, sem falar que onde tem fogueira, tem festa, pessoas propagando o vírus livremente. Considero acertada essa proibição das fogueiras. Se agirmos da maneira certa, sairemos mais cedo dessa situação catastrófica.

Esse nos parece mais sensato, considerando o pisar de ovos. Vamos aproveitar os comerciais para saber o que acontece com o trânsito, o motociclista vive, mas não pode andar, o dono do carro envolvido leva as mãos à cabeça enquanto olha o para-choque dianteiro, o guarda de trânsito começa a liberar a pista, a máquina não pode parar. Voltamos ao programa de rádio.

– Então, Santos, retomando, quero aproveitar para fazer uma crítica à prefeitura, que mesmo tendo proibido as fogueiras, não fez menção de nenhuma fiscalização nas ruas para que se cumpra o decreto, nem mesmo proibiu a venda de fogos de artifício. Os hospitais já estão todos lotados e a cidade ainda corre o risco de ter um contingente de pessoas acidentadas pelo fogo, o que tem sido comum nos últimos anos. Se a proibição é pra valer, tem que se fazer cumprir, a não ser que o prefeito esteja com receio de perder votos, já que esse ano é de eleição...

– Jairo – interrompeu-o o “cientista” –, acho que você não deve colocar política no meio, o prefeito fez o que tinha de fazer, assinar o decreto como recomendou o governador, mas a gente sabe que isso é uma coisa que não pode ser evitada, o povo fazer fogueira no São João. Esse decreto serve mais como um aviso, mas não tem efeito prático e você sabe disso.

– Então não serve pra nada, Santos. Se esta fosse uma gestão séria, a guarda civil municipal estaria neste momento apreendendo as fogueiras que o povo já começou a comprar, e isto seria feito com o apoio da própria polícia militar, que é subordinada ao governo do estado. Mas nessa cidade é assim, um finge que manda, o outro finge que obedece.

Foto: Mateus Britto.

Figura interessante esse Jairo, Jairo Martins, acabamos de saber seu nome. Nosso veículo finalmente anda e o motorista desligou o rádio para atender seu telefone pois não consegue ouvir um debate desse nível e falar com seu chefe que o liga para saber do atraso. É tentador segui-lo, acompanhar sua jornada de trabalho para averiguar, entre outras coisas, o uso de máscaras no escritório em que serve, mas teríamos aqui certo esforço para prender o leitor num ambiente tão tedioso, onde não se pode sequer ligar o rádio para saber do mundo. Vamos ver de perto a proibição das fogueiras.

Seguindo a tradição de explicar o macro para chegar ao micro, devemos saber que se trata aqui do fim do mundo. Certo vírus começou a se propagar na China e, graças à globalização, chegou às áreas mais remotas do globo. Esse fenômeno coincidiu com uma crise rotineira do capitalismo e o debate que temos, principalmente nos países periféricos, é que se as pessoas fizerem a única coisa possível para quebrar a cadeia de contágio, ou seja, ficar em casa, o sistema de produção e de distribuição de mercadorias entrará em colapso, quebrando meia dúzia de homens. Com muita pressão, o governo aceitou a parada econômica e distribuiu um auxílio para as pessoas que não poderiam trabalhar, mas vendo que os outros países já conseguiam retornar à sua relativa normalidade, uma onda de ansiedade tomou a cabeça do presidente e este ordenou que as máquinas fossem lubrificadas e as lojas fossem abertas, para que o comércio de coisas não essenciais, por não poder dizer supérfluas, retomasse seu ritmo.

Sobre as fogueiras, anteciparam o feriado do santo em um mês para evitar o festejo. Entretanto, as pessoas levaram ao pé da letra o fato daquele dia instituído ser o de São João e fizeram fogueiras, comeram as comidas típicas e vestiram-se de vilões portugueses, todos bem juntos. Não atribuindo a isto, mas os casos da doença causada pelo vírus subiram como um foguete ou um balão, para nos mantermos na atmosfera junina. Agora, chegado o vinte e três de junho, as pessoas querem comemorar novamente, pois este é o dia certo, daí a necessidade do tal decreto de proibição das fogueiras que ia sendo debatido no rádio.

Jairo Martins, crítico da gestão da prefeitura desde os tempos do coronelismo, tem denunciado que o decreto é uma farsa, nem o estado nem a sociedade civil se esforçarão para cumpri-lo, mas ele é um homem só, contra os donos do dinheiro que querem forçar a normalidade e contra o povo que quer se divertir.

***

Excluída a possibilidade da onisciência, exercitemos a onipresença, estamos novamente no trânsito, desta vez fluido, mas com Jairo Martins. Este jornalista tem a missão homérica de acabar com o São João de uma cidade e a sua única ferramenta é a comunicação, excluída a possibilidade de ele, sozinho, sair como um doido desfazendo as fogueiras das famílias. Por sorte, estamos aqui com um homem conhecido na cidade e que neste momento se encaminha para outro programa de rádio, de menor expressão, mas que ainda assim deve estar sintonizado pelos camelôs ou motoristas que não podem desfrutar do trânsito.

– Boa tarde, meu caro ouvinte, hoje temos aqui Jairo Martins pra falar de um assunto polêmico, a proibição das fogueiras na cidade. Bom dia, Jairo, um imenso prazer ter você conosco nessa tarde, obrigado por ter vindo.

– Boa tarde a todos, eu que agradeço o convite para falar de um assunto de fundamental importância para a nossa população. Quero começar dizendo que nosso município já bateu a casa de mil pessoas infectadas com o vírus, quase sessenta já morreram, mas ninguém parece estar preocupado. O mundo todo tem mostrado que ficar em casa e evitar a aglomeração são as únicas formas de arrefecer o número de mortos mas, enquanto isso, o prefeito autoriza a abertura dos comércios, confinando as pessoas nos ônibus e locais de trabalho, para depois retornarem para as suas casas, onde podem ter idosos que não podem se expor a esse risco.

– Tem que ser levado a sério, não é isso, Jairo?

– Exatamente, e agora as pessoas estão se mobilizando para fazerem festas de homenagem a São João sem nenhuma necessidade, a prefeitura, por sua vez, proibiu as fogueiras, decisão acertada, mas não pretende fazer nenhuma fiscalização. Então, eu peço à população que não faça fogueira, não faça festa, porque isso põe em risco a vida de muita gente, gente que pode ser seu familiar, seu vizinho ou até você mesmo.

A conversa é de comadres, Jairo Martins fala e o apresentador concorda. As duas figuras também não perdem a oportunidade de tecer críticas à prefeitura. Não sabemos da audiência, mas é possível que as pessoas que ora os ouvem estejam se convencendo que a fumaça potencializa os sintomas da doença ou no mínimo de que a culpa toda é do prefeito e que é preciso derruba-lo. Ponto para Jairo, ele se empolga.

– Além do mais, caro ouvinte, temos que repensar certas tradições, esse hábito de acender fogueira essa época do ano vem de uma tradição pagã que a igreja católica apropriou, era a comemoração da chegada do verão. João Batista provavelmente nem nasceu nesse dia, isso foi uma instituição para tirar o significado das outras festas.

Não, Jairo. Nunca tente questionar a fé de uma pessoa se quiser convencê-la a algo. Provavelmente, o camelô desligou o rádio e agora reclama que o vírus é uma invenção comunista para derrubar o presidente e transformar o país numa república ateísta. E que ele não está nem aí, nem ia, mas agora vai acender uma fogueira em homenagem ao santo, seja lá qual for o seu milagre.

Vamos seguir acompanhando Jairo Martins, ele está tão frustrado quanto nós. Agora é noite e ele usa máscara, está andando pela rua para saber como estão sendo os festejos juninos nas casas das pessoas, afinal ele é um jornalista, seu objeto é o fato e esse só acontece se tiver alguém para o ver.

O que ele vê não é tão ruim, na verdade a tradição das fogueiras já está se perdendo há muitos anos, contam os mais velhos que na frente de cada casa havia uma e pouco antes da pandemia só era possível ver três ou quatro em cada rua. Jairo vê ruas sem fogueiras em sua maioria, as que existem são tímidas, queimam duas horas e viram cinzas.

– Fiz um inferno, nem precisava.

Jairo Martins não abriu os ouvidos e acabou perdendo o furo jornalístico: as festas continuaram sem fogueira e sem forró. Mas não o culpemos, é difícil reconhecer o São João sem esses elementos.

*


Mateus Britto é graduado em Licenciatura em História pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), militante da Consulta Popular – Núcleo Revolta no Engenho de Santana e integrante do Coletivo Brasil Vermelho.


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