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TRANSPORTE PÚBLICO URBANO EM ILHÉUS: UMA ANÁLISE HISTÓRICA COMPARATIVA

Igor Campos Santos


Nos últimos anos, principalmente a partir do início da pandemia provocada pelo vírus Covid-19, a cidade de Ilhéus vem enfrentando alguns problemas relativos ao transporte coletivo municipal. Veículos quebrados, horários inconstantes, frota reduzida, precarização do trabalho dos motoristas (que exercem irregularmente as funções de condutor e cobrador) são exemplos das dificuldades diárias promovidas pelas concessionárias do serviço de transporte público. Além disso, a falta de fiscalização e de intervenção do Poder Executivo municipal nessa questão contribui com a indiferença das empresas de transporte, que ignoram as irregularidades citadas.

Conhecendo a situação atual, proponho neste texto a realização de uma breve análise da introdução dos serviços de transporte coletivo urbano na cidade de Ilhéus, com o objetivo de comparar historicamente esses dois momentos. Obviamente reconhecemos que se trata de tempos e contextos distintos, com demandas e respostas diferentes, nos quais os sujeitos que estavam/estão à frente das questões relativas ao assunto agiam/agem dentro das possibilidades materiais e intelectuais existentes e convenientes.

O serviço de transporte coletivo urbano foi introduzido em Ilhéus na década de 1920, mais precisamente em 1926, há quase um século. No ano de 1925 o então Intendente do município, Mário Pessoa, por meio da Lei nº 307, abriu concorrência pública “para os serviços de transporte em veículos nas zonas urbana e suburbana da cidade e fronteiro arraial do Pontal”. (CORREIO DE ILHÉUS, 1925, ano V, nº 673) De acordo com o jornal Correio de Ilhéus, o “transporte de passageiros nesta cidade e nos subúrbios” seria realizado em “auto-ônibus modernos e elegantes”. (CORREIO DE ILHÉUS, 1925, ano V, nº 681)


Foto: Reprodução do Facebook Centro de Memória de Ilhéus. Disponível em: https://www.facebook.com/centrodememoriadailheus/photos/419370588168836

Em março de 1926, o mesmo jornal publicou uma pequena nota comemorando a chegada do primeiro auto-ônibus na cidade. Com o título de “PROGRESSO”, o texto informava que seria “iniciado o serviço de auto-ônibus na cidade”, e que o “possante” automóvel da Ford serviria para o transporte de passageiros na urbe. Para o redator “A cidade deve[ria] receber essa notícia com alegria” pois ela representava “mais um motivo de progresso e indica[va] que marchamos para um futuro grandioso.” (CORREIO DE ILHÉUS, 1926, ano VI, nº 727)

No dia 6 de abril do mês seguinte, o Correio de Ilhéus publicou uma matéria em comemoração à inauguração do serviço de transporte de passageiros na cidade. Nela, o redator compara as “conquistas extraordinárias e edificantes no ponto de vista moral, social e material” (Ibidem, 1926, ano VI, nº 731) – atingidos pela cidade naquele momento histórico de transformação urbana – com a antiga vila colonial, considerada pequena, decadente e fora dos padrões estéticos prezados naquela época (RIBEIRO, 2008, p. 89; SANTOS, 2021, p. 41). O texto valoriza os melhoramentos urbanos realizados pelo Intendente Mário Pessoa, elogiando “as ruas que se rasgam magnificamente, dando-se ao tráfego fácil e constante dos automóveis, dos auto caminhões que as cortam em todos os sentidos, sem dificuldade nem perigo.” (CORREIO DE ILHÉUS, 1996, Op. Cit.)

Ao tocar no assunto das modificações urbanas, o redator ressalta que esse foi um dos principais motivos que levou à introdução dos serviços de auto-ônibus em Ilhéus. Em suas palavras:


É pois, diante desses melhoramentos, em face desse meio absolutamente satisfatório de viabilidade, permitida pelas ruas largas e bem calçadas a paralelepípedos, graças ao fomento animador do chefe clarividente e ativo dos negócios públicos municipais, que acabamos de ser enriquecidos com mais um grande benefício que veio pôr termo a uma das maiores e mais palpitantes necessidades do nosso meio, isto é, a inauguração do serviço de auto-ônibus de que tanto careciam principalmente as povoações dos nossos bairros: Conquista, Unhão, Copacabana, Pimenta, Gameleiro, etc. (Idem)


Na sequência é relatado como aconteceu o ato de inauguração, com solenidades e festas, bem como comenta sobre as tarifas e os itinerários e, finalmente, explica o funcionamento dos sinais necessários para embarques e desembarques.

Outro motivo apontado como justificativa para o início da circulação de ônibus público na cidade foi sua expansão urbana. De acordo com um texto publicado no Correio de Ilhéus, ainda no ano de 1926, um auto-ônibus da empresa de transportes que operava em Ilhéus havia percorrido a recém-aberta Avenida 2 de Julho, “aquelas terras à beira mar, conquistadas corajosamente pela ação fecunda da atual administração, que procura, a golpes de esforço, dar expansão a esta cidade, apertada que era (...)”. (Ibidem, 1926, ano VI, nº 769). É fato que no período a zona urbana passou por um processo de transformação e expansão, anexando algumas áreas ao seu redor constituídas por fazendas loteadas pelos seus proprietários. (RIBEIRO, Op. Cit., p. 89)

Exemplo disso foi a doação feita em 1925 pelo coronel José Gomes do Amaral Pacheco de grande parte da sua propriedade, a Fazenda Opaba, para a “abertura das ruas, avenidas e praças” naqueles terrenos. (CORREIO DE ILHÉUS, 1925, ano V, nº 550) Provavelmente o interesse do coronel era que o poder executivo municipal beneficiasse suas terras com a implantação de serviços públicos como esgotamento sanitário, água encanada, iluminação pública e transporte urbano, não pura e somente para o bem público, mas para proveito próprio, pois os terrenos seriam loteados. (Ver: CHALHOUB, 1996, p. 52)

Contudo, é possível percebermos outro motivo, “não-dito”, que teve forte influência no processo de implantação do transporte coletivo urbano na Cidade de Ilhéus: as disputas do poder público municipal contra os carroceiros.

No período em questão houve diversos embates entre a intendência e os condutores de carroça da cidade. Esses veículos passaram a ser vistos como “símbolos ligados ao atraso e a pobreza” (CARVALHO, 2015, p. 48), e tudo que estava ligado a eles sofreu perseguições por parte do executivo municipal e de seu órgão de imprensa, o Correio de Ilhéus. (SANTOS, 2021, p. 109) Alguns indícios podem ser listados para interpretar a situação, como a intenção do poder público em controlar a atividade laboral dos carroceiros; a tentativa de eliminar esses “símbolos de atraso” do espaço central da urbe que “progredia”; e o interesse em acabar com os currais ou cocheiras, considerados focos de doenças, nas proximidades da zona urbana. (CARVALHO, Op. Cit.; SANTOS, Op. Cit.)

Para alcançar seus objetivos e diminuir a dependência da população pelos veículos de tração animal, a intendência formulou campanhas contra as carroças, com vários textos publicados no Correio de Ilhéus, bem como uma série de dispositivos legais que regulamentavam os carroceiros e seus serviços; impondo algumas obrigações para a retirada da licença do exercício do trabalho; aumentou o preço dos impostos sobre as carroças; instituiu serviços de fiscalização baseados nas posturas municipais, com o objetivo de multar, suspender a licença do trabalhador ou apreender a carroça e seu condutor; e concedeu isenções de impostos às empresas que adquirissem veículos automotores. (CARVALHO, Op. Cit.)

Toda essa situação gerou descontentamento por parte da classe dos carroceiros, que fizeram greves, aumentaram os preços das carroçadas, fugiram frequentemente da fiscalização e persistiram em seus trabalhos, exercendo pressão sobre o poder público municipal. (CARVALHO, Op. Cit.)

Como já foi dito acima, ressalvadas as diferenças históricas e contextuais, algo parecido acontece atualmente em Ilhéus: a disputa entre as empresas de transporte coletivo da cidade, com o auxílio da prefeitura, contra o transporte clandestino, as “lotações”.

Percebemos com certa frequência ações policiais que visam coibir o trabalho realizado por homens e mulheres que encontraram a oportunidade de atender – de forma irregular – uma “demanda de mercado”, visto que a oferta do transporte coletivo na cidade pelas concessionárias atuais vem se demonstrando incapaz de atender a população com um mínimo de qualidade possível.

Importa refletirmos quais são os objetivos dessas empresas e do executivo municipal com a perseguição ao transporte alternativo. Seria o apreço pela segurança dos cidadãos e o cumprimento da lei, visto que é necessária habilitação em categoria específica para o transporte de passageiros? Muito provavelmente a resposta é negativa, já que nem a Lei Orgânica Municipal está sendo respeitada por ambas as partes. Provavelmente a intenção das empresas é meramente o lucro, sem nenhuma concorrência possível. Sabendo que oferecem um serviço precarizado, elas reconhecem que o mercado está aberto à disputa, e que os motoristas de “lotação” suprem, de certa forma, a alta demanda de mobilidade da cidade.

Não entraremos no mérito da discussão sobre a ilegalidade do transporte clandestino em Ilhéus, pois, se o transporte público funcionasse como deveria - com qualidade - possivelmente não existiria a opção pelas “lotações”. Em vez disso, devemos refletir sobre a maneira como eles vêm lidando com as perseguições da fiscalização municipal, que tem o apoio das concessionárias que atuam no município. Evitando o embate direto, até porque estão em situação de ilegalidade e irregularidade, alguns motoristas utilizam da troca de mensagens por aplicativo para saber se estão ocorrendo fiscalizações em certas áreas – prática também ilegal, mas que demonstra a resistência contra as decisões municipais conluiada com as empresas de transporte.

Também é possível presenciar o caso de “lotações” que circulam na cidade com placas de LED escrito UBER ou 99, além de taxistas e motoristas de aplicativo que atuam como transporte clandestino, recolhendo passageiros a preço de passagem de ônibus. Enfim, trata-se de um mercado “aberto”, por assim dizer, já que a oferta dos serviços não corresponde à demanda municipal, tanto em quantidade como em qualidade.

Que fique claro, não estamos defendendo o modelo econômico liberal, apenas utilizando exemplos dessa escola de pensamento da economia para demonstrar a fragilidade do sistema de transporte coletivo urbano e rural de Ilhéus.



REFERÊNCIAS


CARVALHO, Philipe M. S. de. Trabalhadores, Associativismo e Política no Sul da Bahia (Ilhéus e Itabuna, 1919-1934). Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.


CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.


RIBEIRO, André L. R. Urbanização, poder e práticas relativas à morte no sul da Bahia, 1880-1950. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008.


SANTOS, Igor C. A "Princesa do Sul" na Narrativa Ficcional de Jorge Amado e na Imprensa Escrita Local: representações da Cidade de Ilhéus-Ba na década de 1920. Dissertação (Mestrado em História) - - Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Educação. Programa de Pós-Graduação em História, Cultura e Práticas Sociais - PPGHCPS, Campus II. 2021.



Igor Campos Santos é Mestre em História pela Universidade do Estado da Bahia, militante do Partido dos Trabalhadores, faz parte da JPT Ilhéus e integra o Coletivo Brasil Vermelho e o Coletivo Luta.


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